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*Este é um capítulo excluído na revisão final de Caminho de Sangue e Pólvora. Além desta página, também está disponível para leitura no spin off Contos do Beco.

Professores e seus... métodos.

     Era terça-feira e eu já estava atendendo minha quarta cliente da semana. Particularmente, não gostava de atender chamados sentimentais como aquele. A maioria de seus motivos eram simples demais para matar alguém ou, quando chegava o momento, vinha o arrependimento. Ainda assim, eu precisava do dinheiro, de forma que seria estupidez desperdiçar qualquer entrevista que fosse.

     Oito horas da manhã e eu observava um casal de aproximadamente quarenta anos de idade, sentados em uma mesa externa da confeitaria movimentada. Abraçados, olhavam ao redor com desconfiança e preocupação.

     — Quem vocês querem que eu mate? — Perguntei logo que cheguei, sem devaneios.

     Eles se ajeitaram na cadeira. Pareciam tentar parecer relaxados ou formais.

     — Não é bem assim.... — A mulher começou tentando não gaguejar. — É só que... uma professora da escola do nosso filho...

   Seus olhos se encheram de lágrimas e pude perceber que ela não conseguiria continuar sem desabar. Por sorte, o marido se manifestou:

    — Ela é a professora da segunda série, nosso filho tem sete anos e soubemos que essa mulher tem um passado horrivelmente comprometedor. — Ele fez uma pausa, percebendo o que tinha dito e então me olhando nos olhos com arrependimento. — Me desculpe, eu não quis...

     Fiz um gesto de dispensa com a mão e ele continuou.

    — Achamos que ela está, você sabe, de marcação com ele, mas não queríamos tirá-lo da escola, ao menos não no meio do ano letivo.

   — E matar essa mulher é a melhor opção, então. — Falei. Eles pareciam se impressionar com a minha tranquilidade. — Não buscaram a polícia ou coisa assim?

     Ambos negaram.

    — Outros pais sim, foram desde a coordenação até a polícia local, mas nada nunca aconteceu. E a polícia diz que não há provas relevantes contra essa professora. — A mulher disse, um pouco de revolta em sua voz.

    Fiquei pensativa por um momento. Uma professora com tanto poder, a ponto de se livrar da polícia... era um bom caso e, se fosse realmente possível confirmar o “passado horrivelmente comprometedor”, não precisaria de muitos motivos para matá-la.

    — Eu aceito o caso. — Disse. — Antes vou precisar investigar por minha conta, obviamente. Seguindo o plano, vou ligar para vocês e pedir uma confirmação antes do ato. Podem me pagar depois, sei que já tem o meu preço.

    Eles levaram um momento para assimilar tudo e, após feito, me levantei.

    — Apenas... — o pai me entregou o panfleto da escola. O rosto de uma mulher estava circulado em caneta vermelha, o qual supus ser a face da minha vítima. — ...mantenha a discrição.

     Aquele seria um dia interessante.

    Retornei à delegacia e, dentro do cubículo o qual chamava de quarto, procurei montar o melhor conjunto que dissesse “sou uma jovem mãe" enquanto buscava informações sobre a mulher no computador de Alexander, tarefa a qual foi mais fácil do que encontrar as roupas certas.

   Com um salto baixo e uma bolsa de mão, andei algumas quadras até encontrar um ponto de táxi. Dei o endereço da escola enquanto ainda arrumava o cabelo. Minha personagem seria uma mãe solteira, jovem viúva. Não podia demonstrar desleixo, mas também nenhum exagero na aparência. Segui o caminho em silêncio, lendo o que havia impresso na delegacia: uma longa ficha criminal, porém nada relacionado a crianças. A professora havia mudado de nome, dificultando a busca sobre o seu passado, mas aqueles os quais haviam acesso ao sistema, como Alexander, sabiam de tudo e, de certa forma, eu compreendia o medo de enfrentá-la. Presa mais de uma vez, havia sido solta recentemente após cinco anos. Além dos diversos homicídios que seu nome carregava, alegava ter se desvinculado da gangue a qual fazia parte desde a adolescência, mas os documentos adulterados para sua nova profissão no campo docente mostravam o contrário.

     A escola era grande, possuindo duas entradas de fácil acesso pelo público: uma pelo prédio onde deveriam ficar as salas de aulas e outra pela secretaria. Optei pela segunda, não sendo notada em um primeiro momento até me aproximar e uma mulher de terninho cinza sorrir:

     — Tudo bem? — Pela má aplicação do botox, seu salário não deveria ser tão alto.

     — Sim... — Respondi. — Um casal de amigos me recomendou a escola, eu recém me mudei com minha filha...

     — Ah, claro. Ela tem quantos anos?

     — Vai fazer dez. — Sorri como uma mãe orgulhosa.

    — A melhor fase, não é? — A simpatia da secretária estava começando a me incomodar. Ela espalhou alguns folhetos na mesa. — Bom, nós temos vários programas estudantis aqui. O tradicional, o período integral, temos também grupos de estudos e aulas extracurriculares como dança, música, artes em geral. Para os esportistas temos as quatro modalidades, além da natação... Desculpe, é muita informação? — Ela sorriu novamente. — Qual o seu nome? Aceita um café?

     — Ah, não se preocupe. — Respondi com o mesmo sorriso. — Meu nome é Maria Reynolds e adoraria o café.

     Enquanto ela se levantava para pegar o café na máquina de expresso, observei o saguão. Havia uma segunda secretária digitando freneticamente quase sem piscar e, sem a miss simpatia falando, era fácil ouvir o som vindo da sala ao lado. Pela minha experiência, deveria ser a coordenação ou a sala dos professores.

     — Aqui, senhora Reynolds. — A secretária voltou com o café. — Se interessou por algum dos programas?

     — Por todos, na verdade. — Respondi, compartilhando da gargalhada falsa. — Todos parecem oferecer o melhor para minha filha.

     — Por que não faz um tour pela escola? Quem sabe isso facilite sua escolha.

     — Ah, eu adoraria!

     — Vou chamar a coordenadora, só um momento.

    Enquanto ela deixava a sala sorrindo, observei os panfletos e identifiquei imediatamente o rosto da vítima em um deles. Período integral, então.

    — Senhora Reynolds? — Uma mulher baixa, usava um conjunto preto de blazer e saia lápis, a camiseta com alguma frase estereotipada da escola por baixo e o cabelo cacheado preso em um coque. Eu me levantei, andando até ela e a cumprimentando. — Sou a Merly, coordenadora. Quer conhecer nossa escola então? Já foi informada sobre nossos programas de ensino?

      — Já sim. — Respondi sorrindo. — O período integral pareceu interessante, mas gostaria de conhecer a escola.

      — Por aqui. — Com um gesto de mão e um sorriso, ela abriu espaço para que eu fosse na frente.

   Por uma hora, Merly falou sobre os prêmios ganhos pela escola e seus alunos, além do diferencial por conta dos malditos programas. Havia cartazes e palavras de E.V.A coladas nas paredes, além da mistura assustadoramente exagerada de glitter e cores berrantes.

     — Vou te mostrar o pátio antes que o intervalo comece. — Merly disse, indicando uma porta pequena a qual levava para um enorme jardim.

Árvores baixas, grama, pedras que davam uma boa mesa para piqueniques de crianças. Até mesmo um parquinho de plástico.

     — As crianças gostam de ficar por aqui nos intervalos. Os adolescentes ficam mais afastados, lá. — Ela indicou uma quadra de esportes a céu aberto, inacabada. — Pretendíamos fazer algo mais... moderno naquela parte, mas os adolescentes gostaram assim. Como foi a palavra que eu ouvi esses dias... ah, sim, grunge. — Ela riu.

      Merly continuou caminhando, contando sobre a fundação da escola, a questão de uniformes – existiam uniformes diferentes para cada modalidade de ensino – e espaços disponíveis para uso.

     — Merly, você pode vir aqui? — Uma mulher com aparência cansada e usando um avental verde chamou. — Ah, desculpe... — Ela disse após notar minha presença.

     — Não se preocupe. — Eu disse para as duas. — Por favor, faça seu trabalho. Eu não estou com pressa nenhuma.

     A coordenadora hesitou por um momento e então andou rapidamente até a professora. Esperei que as duas entrassem no prédio para que eu mesma fizesse minha busca pelo local.

     Não foi difícil sair da visão dos monitores e outros professores. O sinal do intervalo tocou logo em seguida e facilmente me misturei com o mutirão de adolescentes para o tal espaço grunge, encontrando logo uma passagem aparentemente não muito utilizada logo atrás. Caminhei silenciosamente, me mantendo atenta quanto aos sons ao redor. Não queria flagrar nenhum casal copulando pelo campus ou episódio de bullying – principalmente o segundo, duvidava que teria alguma espécie de autocontrole se presenciasse uma cena do tipo.

     O som de água me chamou a atenção, junto de um gemido infantil. Me preparei para sacar a arma, sem ideia alguma do que iria ver, e apressei o passo até encontrar a fonte: a piscina da escola. Uma piscina de tamanho semiolímpica a céu aberto, vazia exceto por um rosto familiar e uma pequena figura de tranças loiras.

     — Se você fosse uma boa menina não iria acabar assim. — A professora disse em um tom sádico no qual fez até a minha própria pele se arrepiar.

     — Me desculpa — a menina implorou —, me desculpa! Eu vou me comportar.

     — Eu vou me comportar! — A professora repetiu, zombando antes de forçar a menina a mergulhar a cabeça na água. Ela começou a se rebater e, depois de um longo momento, foi puxada para cima novamente. A mulher agora a segurava pelas tranças molhadas e a criança chorava. — Não chore. — A professora disse antes de repetir a ação.

      De fato, a prova da personalidade da professora estava ali. Eu poderia esperar até o final do expediente da mais velha, mas ver a menina perdendo a consciência acelerou meus instintos. Ignorando se meus sapatos faziam barulho na grama ao redor, corri abaixada junto ao muro que segurava a tela de proteção a qual cobria todo o espaço da piscina e subi silenciosamente a pequena escada de tijolos. O portão havia sido deixado aberto.

      A menina já estava inconsciente quando, em um prazer descomunal, a professora lançou o pequeno corpo inteiro na piscina. Seu sorriso mudou quando a menina não afundou e então ela percebeu: enquanto com uma mão eu segurava o pequeno braço da criança desacordada, com a outra eu encostava a pistola na testa da mais velha.

     Não dei tempo para explicações, atirando ali mesmo e deixando seu corpo cair na água logo em seguida, mudando o azul por vermelho quase que instantaneamente. Consegui tirar a menina dali antes disso. Ela ainda respirava, mesmo que fraca.

Passos correndo em direção a piscina não me deram alternativa a não ser deixar o corpo pequeno o mais próximo possível da porta e então correr antes que fosse pega. Com todo o alvoroço, encontrei um espaço para fugir da escola.

      Tirei o casaco e desprendi o cabelo, tentando mudar a aparência o mínimo que fosse caso suspeitassem da minha personagem, e então fui até o telefone público algumas quadras após. Disquei o número do casal e a voz do marido foi a primeira que reconheci.

      — Ela está morta. — Falei, sem devaneios.

      — Acabamos de receber a notícia. Foi você? — Ele perguntou, um tanto trêmulo.

      — Meu pagamento. Sabe onde entregar.

     Desliguei, deixando-o com seus próprios pensamentos. Sem mais trabalhos para aquele dia, voltei para a delegacia, voltando a usar meu traje habitual e, pouco depois, encontrei o casal na mesma confeitaria. A diferença, no entanto, foi a falta de comunicação.          Peguei o pacote de dinheiro e coloquei na bolsa enquanto me afastava, sem tempo para que questionassem. Eles sabiam que não deveriam me seguir.

     Quando abri a bolsa, mais tarde naquele dia, encontrei junto das notas um bilhete de agradecimento. Sorri, antes de amassá-lo e jogá-lo fora.

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